Como a política virou Fla-Flu e a razão levou cartão vermelho
- sarcasticotidiano
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Atualizado: há 3 dias
Em clássico eterno, o torcedor brasileiro pintou a cara, lembrou-se de vestir a camisa, mas se esqueceu de usar o cérebro

Editorial de 21 de abril de 2025
Existe muita gente sensata, e não somos só nos do sarcastiCOtidiano, que enfatiza com todas as forças: política e futebol não se misturam. E, de fato, não se deveriam mesmo — exceto quando se tornam indistinguíveis (o que não é comum, e muito menos o que ocorre no momento em que vivemos hoje no Brasil). O país de hoje parece mais interessado em torcer por candidatos do que em entender suas propostas e planos de nação — se é que eles existem. E o problema não está só em torcer, mas em torcer com fanatismo. Em transformar debates em arquibancada, adversários em inimigos, e partidos em clubes de coração. Quando política vira Fla-Flu, o placar final é o da falência coletiva: do diálogo, da razão, e, por vezes, da própria noção de civilidade.
Foi mais ou menos ali, na campanha de 2014, que o apito inicial soou. A polarização que antes era só um arranca-rabo de mesa de bar ganhou status de briga institucionalizada. A eleição de Dilma Rousseff contra Aécio Neves, a mais acirrada que nossa população vivenciara até então, não acabou nas urnas: ela transbordou em redes sociais, jantares de Natal de famílias outrora unidas pelo sangue e pelo afeto sumariamente cancelados, amizades de infância deletadas com a mesma frieza com que se bloqueia um spam. Em nome da “coerência ideológica”, irmãos passaram a se tratar como estranhos, casais se separaram, mães e pais passaram a se ver como inimigos e grupos de WhatsApp viraram campos minados nos quais uma figurinha (emoji) mal colocada era suficiente para deflagrar uma “Terceira Guerra Mundial” — só que sem a sofisticação diplomática de, pasme, uma guerra genuína.
A eleição de Dilma Rousseff contra Aécio Neves, a mais acirrada que nossa população vivenciara até então, não acabou nas urnas: ela transbordou em redes sociais, jantares de Natal de famílias outrora unidas pelo sangue e pelo afeto sumariamente cancelados, amizades de infância deletadas com a mesma frieza com que se bloqueia um spam.
Hoje, dez anos depois, seguimos torcendo. E torcendo mal. Se um “político de estimação” faz algo grotesco, sua respectiva torcida organizada digital já corre a blindá-lo com discursos prontos: “mas o outro lado fez pior”. E lá se vai a chance de uma sociedade adulta que consiga reconhecer erros sem antes consultar seu time e o que seus dirigentes os ordenam a repetir como pseudoargumentos sem fundamento real. Cada gafe vira “narrativa”, cada escândalo é só “mais uma tentativa de desestabilizar o projeto”. É como se estivéssemos todos presos numa eterna semifinal, em que empatar não é opção e perder é traição à pátria.
Esse comportamento não só infantiliza o debate público, como cria uma realidade alternativa, ne qual os fatos importam menos do que as versões. Vira quase uma religião — com dogmas, mártires e heresias. E quando política se torna fé cega, não há espaço para dúvida, autocrítica ou mediação. O resultado? Um país rachado ao meio, incapaz de enxergar o outro como cidadão, apenas como ameaça. Na pior das hipóteses, com o absurdo de um grupo desumanizando o outro sem dó — erros já comuns na história da Humanidade que foram o estopim para verdadeiros flagelos humanitários, como o fatídico holocausto judeu e demais tragédias do tipo. Os exemplos estão na casa das dezenas, quiçá de centenas.
O perigo disso tudo não é só o mal-estar coletivo ou os grupos de família desfeitos (embora, sejamos honestos, alguns até enxergaram isso como uma espécie de livramento). O perigo real, este sim, é o da erosão do pacto social. Quando se joga política como futebol, esquece-se de que do outro lado não há um “time rival”, mas pessoas que compartilham o mesmo transporte precário, a mesma saúde pública em frangalhos e o mesmo salário que evapora antes do fim do mês. São como ratos afundando no mesmo transatlântico. A diferença é que, ao contrário do futebol, na política o juiz nunca é imparcial, o VAR nunca funciona, e o campeonato parece sempre manipulado pelos donos da bola — que estão muito ocupados nos camarotes, brindando com quem quer que vença o clássico. Sim, pois a guerra se resume a ficar entre os soldados, jamais entre seus comandantes.
Quando se joga política como futebol, esquece-se de que do outro lado não há um “time rival”, mas pessoas que compartilham o mesmo transporte precário, a mesma saúde pública em frangalhos e o mesmo salário que evapora antes do fim do mês.
E adivinhe: é exatamente isso que interessa ao sistema. Quanto mais torcedores se estapeando na arquibancada, menos gente percebe que o estádio está desabando. A polarização burra é útil porque impede o povo de cobrar quem realmente merece ser cobrado. Em vez de exigir saúde, educação e justiça, a massa se entretém brigando por narrativas, hashtags vazias de significado e candidatos que raramente pisam o chão do SUS ou andam de trem ou metrô. E enquanto o povo grita “é campeão!”, quem realmente governa segue ileso, reeleito e cada vez mais rico.
Sim, política pode ser apaixonante (embora isso não seja recomendado). Mas jamais deve ser cega. É hora de entender que política não é sobre vencer, é sobre viver. E, do jeito que está, estamos todos perdendo. Só não percebe quem ainda acha que gritar “mito” ou “ladrão” resolve o processo inflacionário cada vez mais crescente, ou a corrupção irrefreável. No fim das contas, o verdadeiro inimigo nunca esteve do outro lado da arquibancada. Ele sempre esteve no camarote — e rindo da cara da plateia.